quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Vida difícil com a memória

Sou uma audiência pobre para a minha memória.
Quer que ouça a sua voz a todo o momento,
Mas eu mexo-me, agito-me,
Escuto ou não
Saio, regresso, e saio novamente.

Ela quer todo o meu tempo e atenção.
Não tem problema algum quando durmo.
De dia, o caso é diferente e causa-lhe preocupação.

Ela descobre cartas antigas, ansiosa por mas mostrar
Agita acontecimentos, importantes ou não,
Os meus olhos para o que já foi visto ela reclama,
É para os meus mortos que os chama.

Nas suas histórias, tenho sempre tenra idade.
Isso é gentil, mas a história não muda.
Cada espelho traz-me sempre novidade.

Zanga-se quando encolho os ombros.
E vinga-se, trazendo erros passados,
Facilmente esquecidos, mas pesados
Olha-me nos olhos, sente a minha reacção.
Depois - podia ser pior - dá-me consolação.

Quer que viva para ela e com ela.
Idealmente num quarto escuro e fechado,
Mas os meus planos ainda incuem o sol de hoje,
As nuvens que passam, a estrada que foge.

Por vezes desta memória fico farto.
E sugiro a separação. Até à eternidade.
É então que me olha com piedade,
Porque ela sabe que separado estarei morto.


 
Wislawa Szymborska

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