domingo, 17 de maio de 2020

O futuro perdeu-se no calendário


Eu transmito-te este domingo à tarde,
a voz do vizinho através da parede.

Tu transmites-me a distância que existe
depois do que consigo ver pela janela.

Durante a noite mudou a hora e, no entanto,
continuamos no tempo de ontem.

Como é raro este domingo, não podemos
garantir que amanhã seja segunda-feira.

O futuro perdeu-se no calendário, existe
depois do que conseguimos ver pela janela.

O futuro diz alguma coisa através da parede,
mas não entendemos as palavras.

Lavamos as mãos para evitar certas palavras.

E, mesmo assim, neste tempo raro, repara:
tu e eu estamos juntos neste verso.

O poema é como uma casa, tem paredes
e janelas, é habitado pelo presente.

Olhamo-nos nos olhos pela internet,
estamos verdadeiramente aqui.

O poema é como uma casa,
e a casa protege-nos.

José Luís Peixoto

Sem comentários: